Ser cristão na Terra Santa é uma missão

17/10/2025
Margarida S. Lopes, Jornalista

Josep Hazboun confessa que «não é fácil manter a fé e a esperança» perante as atrocidades cometidas em Gaza e na Cisjordânia. Mas ele, que dirige uma das mais importantes associações católicas de beneficência em Jerusalém, recusa «cair na tentação de culpar Deus», o arquitecto do seu optimismo. «O mal não vencerá», acredita, e as igrejas da Palestina, hoje sob ameaça existencial, «continuarão a resistir» para salvar vidas.



@Lusa

Um Masīhī («discípulo do Messias», em árabe), Joseph Hazboun nasceu e vive em Belém, a cidade que tinha 86% de cristãos em 1950 e hoje tem apenas 10%. É director regional da Missão Pontifícia de Jerusalém da Catholic Near East Welfare Association (CNEWA), estabelecida pelo Papa Pio XI, em 1926, para oferecer apoio pastoral e humanitário aos mais necessitados nos territórios das históricas Igrejas Orientais.

Hazboun concluiu os estudos primários e secundários na Escola Terra Santa de Belém, a mais antiga de todo o Médio Oriente, fundada em 1598, onde seria professor de Música. Em Roma, licenciou-se em Filosofia e Teologia na Universidade Pontifícia Antonianum e, posteriormente, concluiu outros cursos, como gestão e tradução.

Embora garanta que é livre de praticar a sua religião, Hazboun está preocupado com a situação em Belém, onde «a maioria das pessoas perdeu o seu rendimento no sector do turismo, totalmente encerrado desde que Israel congelou as licenças de trabalho». Assusta-o os planos do Governo de Benjamin Netanyahu de «cancelar os Acordos de Oslo, acabar com a Autoridade Palestiniana e anexar a Cisjordânia».

Em Jerusalém Leste e em Haifa, Hazboun verifica «o aumento da pressão sobre as Igrejas», para as «enfraquecer e obrigar a vender as suas propriedades». Conventos, mosteiros e ordens religiosas «poderão ter de fechar se forem obrigados a pagar impostos de que até agora eram isentos como recompensa pelos serviços que prestam às comunidades locais».

Aumenta também a violência dos colonos em várias localidades nas imediações de Belém e Ramallah. A única cidade 100% cristã, Taybeh, identificada como Efraim no Evangelho de João e onde Jesus permaneceu com os apóstolos antes da sua crucificação, foi recentemente alvo de quatro ataques de judeus extremistas, que destruíram campos de oliveiras, o principal sustento da população.

Há ainda outra ameaça no horizonte: o plano E1 de expansão de colonatos, que irá isolar Jerusalém Leste e «será o prego no caixão de um Estado palestino», como se congratulou o ministro das Finanças israelita, Bezalel Smotrich.
O E1, realça Hazboun, «afectará seriamente a liberdade de movimento e complicará imenso as coisas», porque a única estrada que liga Belém, no Sul, a Ramallah, no Norte, ficará bloqueada. «A comunidade católica está extremamente ansiosa e preocupada com o futuro.»

Casado e pai de três filhos, Joseph Hazboun juntou-se em 1993 à CNEWA. Em 2017, foi nomeado director regional em Jerusalém desta agência papal responsável pelas «necessidades prementes da comunidade palestina», em parceria com numerosas instituições locais, civis e religiosas. A Cisjordânia e Gaza são lugares que ele conhece bem e sobre os quais aceitou dar esta entrevista à Além-Mar.

 

Desde o massacre (1) cometido pelo Hamas a 7 de Outubro de 2023, considerado «o pior ataque contra o povo judeu desde o Holocausto», os palestinos na Faixa de Gaza estão a ser sujeitos a «limpeza étnica e genocídio», atestam a ONU (2), organizações humanitárias e peritos em Direito Internacional – incluindo instituições e personalidades israelitas (3). Como avalia os últimos dois anos?

É uma situação catastrófica. Há dois milhões de pessoas na linha de fogo, na mira do exército israelita, que não tem qualquer estratégia. O seu único objectivo é forçar o êxodo de todos os habitantes da Faixa de Gaza, o que é irresponsável e desumano. Ordens de retirada são dadas às pessoas em várias áreas; as que partem tornam-se alvos, seja a caminho do que se presume ser uma zona segura ou de campos de deslocados. Estas pessoas são depois obrigadas a mudarem-se novamente para outras áreas. Estão presas, exaustas, traumatizadas, com fome e com sede, muitas vezes sem abrigo. Nem têm sequer uma tenda.

Os novos pontos de distribuição alimentar, criados pelos EUA em Maio [a chamada Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla inglesa), controlada por soldados israelitas e mercenários estrangeiros], tornaram-se “corredores da morte”, verdadeiras armadilhas mortais, porque numerosas pessoas têm sido baleadas quando vão em busca de comida e água.

Israel está também a financiar grupos de milicianos, numa tentativa de minar e enfraquecer o controlo do Hamas. São estas milícias que têm atacado os camiões de abastecimento e vendem mantimentos em mercados locais. A intenção de Israel é criar o caos, o medo e o desespero.

A UNRWA [agência da ONU para os refugiados palestinos] tinha centenas de armazéns e centros de distribuição que funcionavam bem, mas Israel percebeu que enquanto estes serviços continuassem activos, o seu plano de evacuação de Gaza não seria bem-sucedido. [O Parlamento israelita proibiu a UNRWA de prestar auxílio em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém Leste; dezenas das suas escolas e clínicas têm sido destruídas.]

 

 



É na Cidade de Gaza, uma das mais antigas do mundo, a maior da Palestina e onde as Nações Unidas declararam a existência de fome (4), que funciona a única igreja católica do território (5). A 17 de Julho, a paróquia da Sagrada Família foi atacada pela segunda vez pelo exército israelita, que matou 3 pessoas e feriu outras 15, uma delas o pastor da comunidade, padre Gabriel Romanelli. O que nos pode contar sobre este ataque?

Foi o terceiro ataque a uma igreja na Cidade de Gaza. Em Outubro de 2023, Israel já havia bombardeado um edifício de dois andares no complexo da igreja greco-ortodoxa [de São Porfírio, construída no século V]. Foram mortas 18 pessoas, incluindo os pais e uma sobrinha de 6 meses de um membro da nossa equipa CNEWA.

A mensagem é clara: os cristãos devem evacuar [os seus templos] e partir. Mas os cristãos recusaram e recusarão. Os cristãos sabem bem que, assim que saírem, serão arrastados para um ciclo de deslocação para várias zonas da Faixa de Gaza e tornar-se-ão alvos das tropas israelitas. [Nos últimos dois anos, a maioria dos 1,9 milhões de deslocados à força – 90% da população – teve de fugir de uma área para outra dez ou mais vezes, segundo a ONU.]

As pessoas em Gaza estão cercadas e a sufocar. Não podem fugir para o Egipto, porque a fronteira está fechada. As outras fronteiras são com Israel, que tudo controla por terra, mar e ar. A maioria das pessoas está à beira do colapso. Os cristãos decidiram manter-se firmes nas suas igrejas. A decisão não agrada a Israel, porque enquanto as comunidades cristãs permanecerem nas suas igrejas, os habitantes da Cidade de Gaza também aqui ficarão. [Em 21 de Setembro, dia em que o Estado da Palestina foi reconhecido por vários países, incluindo Portugal, 250 mil pessoas, segundo a ONU, tinham fugido por causa da mais recente ofensiva terrestre de Israel.]

O cardeal Pierbattista Pizzaballa, patriarca latino de Jerusalém, e o patriarca ortodoxo, Porfírio III, classificaram a ordem de evacuação de «sentença de morte», e prometeram que o clero e as freiras (6) continuarão na Cidade de Gaza a «cuidar de todos», pois «não há futuro no cativeiro ou na vingança». Que impacto pode ter esta decisão?

Não sabemos ao certo qual será o impacto. Mas sabemos que dos quase um milhão de habitantes da Cidade de Gaza muitos continuarão a resistir às ordens de deslocação. Mantêm-se firmes porque a comunidade cristã, vigiada pelo mundo inteiro, está lá e é, para eles, uma espécie de “protecção”.

 

O Papa Francisco costumava ligar (quase) todos os dias para o padre Romanelli. A tradição tem sido seguida por Leão XIV – ignorado por Israel nos seus apelos a um cessar-fogo permanente – ou a pequena comunidade católica de Gaza sente-se órfã?

Esta prática não se manteve com Leão XIV, mas não podemos dizer que os paroquianos se sintam órfãos, porque a comunidade está no pensamento e nas palavras do novo papa. A comunidade de Gaza sabe que as Igrejas locais e universais fazem o que podem para pôr fim à guerra, mas que tudo está nas mãos dos decisores israelitas e norte-americanos.

 

Os cristãos coptas acreditam que Maria e José passaram por Gaza durante a fuga da Sagrada Família para o Egipto. Quando é que o Joseph ali passou pela última vez? E que história mais o marcou?

Estive em Gaza pela última vez antes de Outubro de 2023. Assim que a guerra começou, não mais pude fazer visitas porque foram canceladas as autorizações de entrada. Havia muita vida em Gaza, ainda que fosse difícil devido ao cerco que Israel mantinha em vigor desde 2007 [quando o Hamas se tornou Governo], mas as pessoas habituaram-se à situação e tentavam gozar a vida, apesar de Israel ter bombardeado o território cinco vezes desde 2009.

Em Outubro de 2019, inaugurámos o Centro Cultural Árabe Ortodoxo, o mais recente centro cristão, que elevou para 14 o número de instituições activas em Gaza, servindo cerca de 300 mil pessoas anualmente. O centro era a jóia das instituições cristãs. Empregava uns 24 jovens e havia a possibilidade de dar emprego a muitos mais quando ficasse operacional.

Infelizmente, a 27 de Outubro de 2023, os israelitas ligaram ao director, o nosso amigo Rami Tarazi, e informaram-no de que teria de evacuar o centro porque o iriam destruir. Ele disse: «Não há mais nada para mim em Gaza. Já tinha perdido a minha casa (destruída por Israel) e agora perdi o meu local de trabalho; o que mais me resta?» Este foi e continua a ser um dos momentos mais difíceis da guerra.



Em 2022, o Joseph alegrava-se porque, embora representasse «apenas 1077 pessoas no meio de dois milhões de habitantes», a comunidade cristã era responsável por «14 instituições, incluindo escolas, hospitais, centros de saúde e culturais, que serviam mais 300 mil pessoas por ano». O que resta destes projectos?

No entanto, desde que esta guerra começou, os Israelitas destruíram o Centro Cultural Árabe Ortodoxo, atingiram duramente a Escola das Irmãs do Rosário, a Escola Ortodoxa, a Escola da Sagrada Família do Patriarcado Latino, as clínicas materno-infantil e os centros de assistência médica do Conselho das Igrejas do Próximo Oriente, a YMCA [organização de apoio a jovens], e danificaram parcialmente o centro médico da Cáritas Jerusalém, o Hospital Árabe Al-Ahli e outras instituições. É impossível prever o que permanecerá operacional e o que poderá ser reconstruído quando cessarem os combates. Tudo depende de quem ficará em Gaza e de como a guerra terminará.

 

Dos seus amigos em Gaza, quantos emigraram? E tomaram essa decisão por temerem o regime islamista do Hamas ou as bombas de Israel?

Os nossos amigos em Gaza partem e continuam a partir por causa da guerra. Os ministros israelitas Ben-Gvir e Bezalel Smotrich encorajam abertamente os palestinos – cristãos e muçulmanos – a emigrar. As políticas que eles aplicam visam o êxodo de todos os palestinos.

Sim, há fundamentalismo entre os muçulmanos sob influência do ISIS [Daesh] desde 2011, e isso preocupa os cristãos –, mas não é esta a razão por que partem. Eles partem devido ao cerco imposto a Gaza e à Cisjordânia, às restrições à circulação entre Jerusalém Oriental e a Cisjordânia, à expansão dos colonatos, à expropriação de terras, às demolições de habitações, ao elevado custo de vida, aos baixos salários... Neste contexto, o crescente fundamentalismo islâmico é um factor que encoraja a emigração, mas não é o principal.

 

No seu ensaio A Letter from Gaza, o escritor palestino Ghassan Kanafani (assassinado por Israel em 1972) diz ao amigo Mustafa, que emigrou para os EUA: «O sentimento sombrio que tinhas quando deixaste Gaza, esse pequeno sentimento deve crescer e tornar-se um gigante dentro de ti. Deves ir buscá-lo para te encontrares, aqui, entre os escombros feios da derrota. [...] Regressa, para aprenderes o que é a vida e o que vale a existência. [...] Estamos todos à tua espera.» Também é este o seu desejo, Joseph: que regressem os que partem?

Seguramente. Esta é a nossa terra, a terra dos nossos antepassados. É o berço do Cristianismo. Somos testemunhas da mensagem da Ressurreição e da Salvação. Somos as pedras vivas que falam do Evangelho e testemunham a Boa Nova. Que sabor teriam as pedras do Santo Sepulcro em Jerusalém ou da gruta da Natividade em Belém, sem nós, as pedras vivas, a comunidade cristã vibrante que leva a mensagem e testemunha a sua fé nesta parte do mundo?

Preocupa-nos a violência contínua, a guerra, a expansão dos colonatos e o confisco de terras. Sim, tememos pelas nossas vidas, mas acreditamos que Deus não abandonará o seu povo, que não nos abandonará enquanto nos mantivermos fiéis e nós não O abandonarmos.



Mas não se sentem os cristãos da Terra Santa abandonados por outros cristãos, pelo resto do mundo?

Ainda que muitos governos se mostrem indiferentes para com o sofrimento dos palestinos e ignorem a trágica realidade dos cristãos palestinos, em particular, continuamos a receber apoio e solidariedade, o que nos dá esperança e força para resistir. Sim, estamos desapontados com os decisores políticos (7), mas não fomos abandonados por indivíduos e comunidades espalhadas por todo o mundo, a quem muito agradecemos.

 

Em Dezembro de 2023, na Letter from the Holly Land [Carta da Terra Santa] que publicou na revista ONE, da CNEWA, o Joseph reconhece que «é difícil sentir a presença de Deus nestes tempos difíceis» e que «é fácil cair na tentação» de O culpar, de sentir que são vãs as orações. Como é que consegue manter uma fé perante tanta destruição?

Não é fácil manter a fé e a esperança no meio das atrocidades e massacres que, diariamente, se cometem em Gaza e, ocasionalmente, na Cisjordânia. Deus abençoou-me com uma personalidade optimista e, por isso, acredito que o mal não vencerá, que um dia teremos paz. Continuo comprometido com a minha fé e os ensinamentos do Evangelho. Reconheço que ser cristão na Terra Santa é uma vocação e uma missão. Rogo ao Senhor que nos dê força e perseverança.

 



NOTAS

(1) Na sua maioria, as vítimas dos ataques terroristas de 7 de Outubro de 2023 – a primeira grande invasão em larga escala de Israel desde 1948 – foram civis: 815 de um total de 1200 mortos; tal como, na sua maioria, foram civis os 250 reféns levados pelo Hamas para Gaza. Depois de trocas de prisioneiros e resgates, só estarão vivos 20.

(2)  Em 16 de Setembro, anunciando os resultados de uma investigação independente solicitada ao seu Conselho de Direitos Humanos (CDH), as Nações Unidas concluíram, pela primeira vez, que, nos últimos dois anos, Israel cometeu «quatro dos cinco actos genocidas» previstos na Convenção de Genebra de 1948, que, para a definição do termo «genocídio» se inspirou no Holocausto dos judeus na Alemanha nazi.

(3) Com quase 65 mil mortos (mais de 80% civis) em dois anos, entre eles «mais de 20 mil crianças – ou seja, uma criança morta por hora», segundo a ONG Save the Children, a prática de «crimes contra a humanidade, limpeza étnica e actos de genocídio» foi comprovada por duas prestigiadas organizações israelitas: B’Tselem e Médicos pelos Direitos Humanos (PHRI). Que Israel está a «provocar um genocídio em Gaza» foi também a «conclusão dolorosa» do reputado historiador do Holocausto Omer Bartov, que «cresceu num lar sionista e serviu no Exército», e do gigante literário David Grossman que, «com o coração partido», admitiu não poder recusar-se mais a usar um termo que se tornou «uma avalancha».

(4) A 22 de Agosto, pela primeira vez, várias agências das Nações Unidas (FAO, Unicef, OMS, PAM) confirmaram a existência de fome – a «níveis catastróficos» e «inteiramente provocada pelo homem» na Cidade de Gaza, afectando mais de meio milhão de pessoas, quase ¼ da população –, com base no Quadro Integrado de Classificação da Segurança Alimentar.

(5) Situada no bairro de al-Zaytoun, na rua al-Kamalia, a sul da Cidade Velha de Gaza, a Igreja da Sagrada Família é um edifício modesto de pedra branca, com uma cruz no topo. Começou a ser construída «no final do século XIX (em 1869 ou 1879, a data é incerta)», refere Luc Balbont, em L’Œuvre d’Orient, mas só terá sido concluída «nos anos 1960», refere o site da Catholic News Agency (CNA). Quando se estimava em 3500 o número de cristãos em Gaza (agora serão uns 1000), a comunidade católica tinha cerca de 500 fiéis; restam menos de 100.

(6) Os católicos de Gaza são auxiliados por padres do Instituto do Verbo Encarnado (a que pertence o pároco argentino Gabriel Romanelli, que chegou em 2019). Estão também ao seu serviço três congregações: Irmãs da Caridade de Madre Teresa (desde 1973); Instituto Servidoras do Senhor e da Virgem de Matará: e Irmãs do Rosário (cujo convento foi incendiado por bombas que o tornaram inabitável).

(7) Só em 17 de Setembro é que a União Europeia – o maior parceiro comercial de Israel –
apresentou um plano de sanções para forçar o fim da guerra, designadamente a suspensão parcial da componente comercial do Acordo de Associação entre ambas as partes, que prevê a reposição dos direitos aduaneiros sobre 37% dos produtos israelitas.