Fotos: @Lusa
Os ataques e chacinas intensificam-se no Leste do antigo Zaire, cometidos por beligerantes que rubricaram acordos prometendo tréguas, e por outros excluídos deste processo. Só em Julho, enquanto discutiam um cessar-fogo, combatentes do grupo M23 mataram 319 civis no Kivu Norte. No mesmo mês, em Ituri, uma das mais violentas organizações islamistas de África matou 32 fiéis numa igreja católica.
Por Paulo Miola, jornalista
Era domingo, 27 de Julho, e na paróquia da Bem-Aventurada Anuarite, na aldeia de Komanda, província de Ituri, os fiéis descansavam após celebrações religiosas. Por volta das 2 da madrugada um grupo de insurrectos entrou na igreja e, com espingardas e catanas, matou 32 pessoas, entre elas crianças e jovens. Outras foram gravemente feridas ou raptadas. Nem todas conseguiram escapar ou ser resgatadas.
No balanço da Monusco, a Missão das Nações Unida na República Democrática do Congo (RDC), o número de mortos é mais elevado – «pelo menos 43 (19 mulheres, 15 homens e nove crianças)» – porque os atacantes, que vinham do seu reduto de 40 grutas no Monte Hoyo, ainda tiveram tempo para assaltar, pilhar e queimar casas, veículos e outros bens, assassinando e sequestrando quem não conseguiu fugir.
Sobre o que realmente se passou na igreja da diocese de Bunia, o relato mais pormenorizado foi feito, em Agosto, ao site Vatican News, pelo vigário local, Dieudonné Litinga. Desde 25 de Julho, informou, vários jovens organizavam o Jubileu de Prata que, no dia seguinte, assinalaria a chegada a Komanda do Movimento Acção Católica-Cruzada Eucarística. Naquela sexta-feira, passaram a noite na paróquia em vigília de oração e, no sábado, depois de todas as festividades, foram descansar para um salão paroquial por volta das 20h45.
À uma da madrugada, Litinga foi avisado de que havia um incêndio no bairro. Ouviu tiros. «Não havia como sair da comunidade», contou. «Ficámos aqui até às 4h40.» Sem rede nos telemóveis para comunicar com o exterior, só mais tarde descobririam o que acontecera: «Os nossos jovens, mães, pais, os que vieram para o jubileu, tinham sido chacinados. Fomos ao local onde haviam passado a noite, a cerca de 500 metros da igreja. Algumas pessoas ainda respiravam; levámo-las para o hospital.»
A 28 de Julho, sem ajuda das autoridades, o vigário e outros na paróquia decidiram enterrar os corpos, 24 deles numa vala comum em terreno sagrado da igreja. «Tínhamos de cavar sepulturas e celebrar uma missa», justifica Litinga. «Eu fiz a homilia, e disse que Deus acolhia estas almas no seu reino, porque foram vítimas da sua fé em Cristo.»
A Conferência Episcopal do Congo (Cenco) emitiu um duro comunicado, condenando «a enésima chacina odiosa contra fiéis inocentes» e criticando a inacção de Kinshasa e da Monusco. O Papa Leão XIV, numa mensagem aos bispos, exprimiu «consternação profunda», concedeu a sua bênção apostólica às famílias enlutadas e apelou a que «o sangue dos mártires seja semente de paz, reconciliação, fraternidade e amor para todo o povo congolês».
ADF: O grupo mais mortífero
O Estado Islâmico (Daesh), no seu canal na rede Telegram, fez gala em reivindicar a matança, levada a cabo pelas Forças Democráticas Aliadas (ADF, sigla inglesa de Allied Democratic Forces), que incluiu na sua autoproclamada “província da África Central”, a qual integra também o grupo Al-Shabab de Moçambique.
As ADF foram fundadas em 1995, no Uganda, por um cristão convertido ao Islão, David Steven/Jamil Mukulu, um jovem que, como líder da seita fundamentalista Tabligh Jamaat, declarou guerra ao presidente, Yoweri Museveni, acusando-o de «perseguir muçulmanos».
Mukulu foi capturado na Tanzânia em 2015 e está a ser julgado em Campala. Depois da sua extradição e detenção, as ADF sofreram várias cisões, sendo a principal facção dirigida hoje por Musa Baluku, cuja doutrina, ainda mais extremista, o tem levado a cometer as piores atrocidades contra civis de todas as religiões.
Dados recolhidos pela unidade de investigação da BBC indicam que as ADF operam como «uma das organizações jiadistas mais violentas no continente africano» e tornaram-se «o mais mortífero dos cerca de 160 grupos armados activos no Leste da RDC», principalmente no Kivu Norte e em Ituri, para onde, a partir de 2002, transferiram as suas bases.
O ataque à igreja em Komanda terá sido um acto de vingança pela escalada numa campanha de bombardeamentos conduzida pelas forças armadas do Congo (FARDC) e do Uganda (UPDF), no âmbito da Operação Shujaa. Esta ofensiva conjunta, iniciada em 2021, tem sido criticada por várias organizações não-governamentais, como a Human Rights Watch, porque «se limita a dispersar as ADF, sem proteger verdadeiramente as populações das represálias».
Em Junho, a paróquia da Bem-Aventurada Anuarite pediu protecção, mas as autoridades locais ignoraram-na. No ataque de 27 de Julho, soldados de Kinshasa, de Campala e da Monusco, estacionados apenas a 3 km de distância, «chegaram tarde, e não para ajudar, só para avaliar o número de danos e mortos», lamentou um responsável da igreja, citado pela revista evangélica Decision.
A chacina, testemunhou a Caritas, citada pela agência Fides, do Vaticano, semeou o pânico generalizado em Komanda e provocou um êxodo em massa para Kisangani, Beni e Bunia (onde já estavam refugiados 20 mil sobreviventes de ataques noutras povoações). Os bairros mais vulneráveis, como Base, Zungukuka, Umoja e Ngombenyama, «estão agora completamente desertos». Todas as actividades económicas e religiosas foram suspensas.
«Em Ituri, a nossa província, só em Julho foram assassinadas, com uma brutalidade indizível, mais de 100 pessoas, incluindo mulheres e crianças», denunciou a Caritas. «Estas mortes representam o fracasso flagrante do estado de sítio [decretado a 3 de Maio de 2021] que deveria neutralizar os grupos armados, restaurar a autoridade do Estado, proteger as populações e estabilizar a região.»
«Quatro anos e 100 prorrogações depois, os resultados são decepcionantes, porque os grupos armados reapareceram e estão mais expeditos do que nunca. Reina a impunidade. As chacinas não são investigadas e os criminosos não são identificados nem julgados. Pior: há provas contundentes que revelam cumplicidade, passiva ou activa, do Exército congolês.»
Um «triunfo glorioso»?
A Caritas alertou, entretanto, para a emergência, no Ituri, de um novo grupo armado, Convenção para a Revolução Popular (CPR), criado em Abril no Uganda por Thomas Lubanga, condenado em 2012 pelo Tribunal Penal Internacional a catorze anos de prisão por crimes de guerra, mas perdoado, em 2020, pelo presidente congolês, Felix Tshisekedi. «Instalou-se na província um caos sem precedentes, e as populações, entregues a si próprias, não sabem em quem confiar, porque o exército regular terá estabelecido “alianças com milícias criminosas que deveria neutralizar”.»
Se as AFD, como admite o International Crisis Group, aumentaram os seus actos violentos «aproveitando o facto de os líderes políticos e militares congoleses estarem focados em negociações de paz» com o Movimento 23 de Março e o Ruanda, o surgimento do grupo de Lubanga poderá complicar ainda mais os esforços mediados pelo Catar e pelos Estados Unidos para estabilizar o Leste da RDC.
No dia 19 de Julho, em Doha, emissários do Governo de Kinshasa e do M23 rubricaram – pela primeira vez – um acordo de paz preliminar, comprometendo-se a «pôr fim a todos os ataques, actos de sabotagem e tentativas de conquista de território». Ambas as partes prometeram igualmente libertar prisioneiros, para «restaurar a confiança mútua».
Em 18 de Março, Doha já havia sido o ponto de um raro encontro entre Tshisekedi e Paul Kagamé, presidente do Ruanda, patrono do M23. Falhados os esforços de mediação de Angola, em Dezembro de 2024, os dois inimigos cederam à pressão do Catar, um emirado árabe que sobre eles exerce influência considerável, graças a investimentos estratégicos em ambos os países. Para apoiar o desenvolvimento de mais de uma dúzia de sectores na RDC, com ênfase nos hidrocarbonetos e minas, na agricultura e na pecuária, o Xeque Al-Mansour Al Thani, um dos mais poderosos membros da família real catari, vai desembolsar 20 mil milhões de dólares.
A “Declaração de Princípios” entre Kagamé e Tshisekedi, com vista a um «cessar-fogo imediato e incondicional», chamou a atenção da Administração Trump, assumidamente pouco interessada em África, mas impaciente por explorar os vastos e valiosos recursos congoleses, avaliados em 2023 pelo Departamento de Estado norte-americano em «cerca de 24 biliões de dólares».
Em 27 de Junho, depois de três meses de contactos e diligências, os chefes da diplomacia de Washington, de Kigali e de Kinshasa juntaram-se na Casa Branca para assinar um “tratado de paz”, que as Nações Unidas descreveram como «um passo significativo» para a estabilidade na região dos Grandes Lagos.
Donald Trump qualificou este acordo tripartido de «triunfo glorioso» e «um novo capítulo de esperança e oportunidade». Não porque os EUA sejam «parte neutral», como observou o investigador Philipp Kastner no site académico The Conversation, mas porque, numa era de forte competição com a China pelas riquezas africanas, as indústrias de defesa, energia e semicondutores dos EUA irão ter, como admitiu Trump, «os direitos de exploração de muitos minerais críticos», como cobalto (o Congo detém mais de 70% da produção global), lítio, urânio, tântalo ou estanho.
«Não é um bom augúrio», queixou-se Kastner, professor de Direito Internacional na Universidade da Austrália Ocidental, em Perth. «Este neocolonial acordo de paz para a exploração não transmite uma mensagem positiva. E, muito provavelmente, não contribuirá para pôr fim a um conflito que é alimentado pela extracção de recursos naturais» e, em três décadas, causou quase 6 milhões de mortos e 7,8 milhões de deslocados internos.
«É difícil avaliar a seriedade da RDC e do Ruanda», disse Kastner, que tem estudado vários processos de paz. O acordo da Casa Branca prevê a cessação das hostilidades; o respeito pela integridade territorial de cada um dos dois países; o regresso das populações forçadas a abandonar os seus lares; e o fim de grupos armados não-estatais. No entanto, embora contemple a promoção dos direitos humanos e do direito humanitário internacional, não tem qualquer menção aos crimes de guerra e outros abusos, como execuções sumárias e violência sexual, cometidos por ambas as partes. “Deveria existir um mecanismo de justiça e reconciliação», porque isso «daria um sinal claro de que o mal não será recompensado».
Vitoriosos M23 e Ruanda
Apesar do regozijo de Trump e dos elogios de vários líderes mundiais com os acordos firmados em Doha e Washington, especialistas na região demonstram mais cepticismo do que esperança. Entre 9 e 21 de Julho, enquanto discutia tréguas, o M23 matou pelo menos 319 civis, no Kivu Norte, acusou Volker Türk, alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos. «Na sua maior parte, as vítimas, entre elas 48 mulheres e 19 crianças, eram agricultores que descansavam depois de plantarem as suas terras.»
Foi, sublinhou Türk, a maior chacina de civis documentado pela ONU desde que o M23 – um grupo predominantemente tutsi, criado há mais de quinze anos, na sequência do genocídio cometido por hutus no Ruanda –, ressurgiu em 2022 no Leste da RDC como uma temível ameaça militar.
O Exército congolês, por seu turno, foi acusado pelo M23 de, «ainda nem a tinta do acordo estava seca», ter enviado tropas e armas pesadas para «todas as frentes» no Kivu Sul, onde se mostra «incapaz de conter, desmobilizar e integrar» nas suas fileiras milícias pró-governamentais como a Wazalendo, que «aterrorizam civis».
Para Liam Karr e Yale Ford, analistas no Institute for the Study of War, em Washington (EUA), «o maior vencedor» do processo mediado pelo Catar é o M23, porque o Governo e o Exército congoleses «fizeram uma concessão significativa, ao aceitarem ficar em pé de igualdade» com um movimento rebelde que rejeitavam como terrorista.
O acordo de 19 de Julho «é também uma vitória para o Ruanda, porque não exige o desarmamento do M23» e assim possibilita que Kigali continue a financiar e armar o grupo, realçam Karr e Ford. É ainda relevante que o pacto Ruanda / República Democrática do Congo não imponha a retirada imediata dos soldados de Paul Kagamé do país vizinho, «o que lhe permite continuar a auxiliar secretamente o M23».
Benjamin Mbonimpa, que em Doha chefiou a delegação de negociadores do movimento, foi claro a esse respeito: «Não nos retiraremos, nem sequer um metro. Ficaremos onde estamos.»
O acordo de 19 de Julho é também uma vitória para o Ruanda
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Não é suficiente falar só com uns e excluir outros
Nas conversações mediadas pelo Catar, o M23 tem sido o único interlocutor aceite pelas autoridades da RDC. Será que o processo de paz pode ser bem-sucedido se incluir apenas um dos 160 grupos armados no Leste? Que outros actores, além do M23 e do Ruanda, seu patrono, podem ser chamados à mesa das negociações? E devem outros, como os islamistas das ADF e a milícia pró-governamental Wazalendo, ser marginalizados?
A Além-Mar fez estas perguntas à antropóloga Lidewyde Berckmoes (foto abaixo), professora no African Studies Center Leiden, na Holanda, e investigadora das dinâmicas de conflito e paz na região dos Grandes Lagos. Esta é a sua análise:
«A violência no Leste da RDC é moldada por múltiplos conflitos e interesses, por isso, a tomada do poder e a influência do M23 [em particular nas províncias do Kivu Norte e Kivu Sul] devem ser vistas neste contexto, com incontáveis partes envolvidas, incluindo Estados vizinhos, como o Ruanda e o Burundi [que, inimigo de Kigali, chegou a ter mais de 12 mil soldados a apoiar Kinshasa], mas também grupos rebeldes provenientes destes países, como as ADF [expulsas do Uganda].»
«Os interesses dos envolvidos não são apenas geopolíticos e estatais; há também os interesses económicos de numerosas empresas, algumas delas multinacionais com sede em países ocidentais. Isto prova a necessidade de um esforço consistente e de longo prazo para levar efectivamente a paz ao Leste da RDC e a toda a região.»
«As negociações e acordos da RDC com o M23 e com o Ruanda são importantes, mas só por si não trarão a paz», assegura Lidewyde Berckmoes. «É necessário convidar o Uganda e o Burundi para a mesa das negociações. O quadro também é complexo a nível sub-regional.» Por exemplo, a milícia Wazalendo, que rejeitou um cessar-fogo por ter sido excluída deste processo, «não é um grupo com uma estrutura hierárquica clara. Porque Wazalendo é um nome vulgarmente usado para [descrever] protagonistas locais que clamam agir em defesa da integridade territorial da RDC, ou seja, integra muitos actores em diferentes localidades, supostamente contra o M23».
«Em suma, para que possam resultar, as negociações têm de realizar-se a diversos níveis e envolver todas as partes relevantes interessadas para que se comprometam com a paz», conclui Berckmoes. (M.S.L.)