Conversão e missão: duas dimensões, um caminho único

Conversão e missão: duas dimensões, um caminho único

05/09/2021
Susana Vilas Boas

(© 123RF)

 

Quando pensamos a vocação, como desafio a discernir, a viver, sem nos darmos conta, vamos sendo conduzidos por inúmeros questionamentos: «Para quê? De que maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? Quem paga as despesas e como o fará?» (Laudato Si’, n.º 185). Tudo parece servir de entrave e as perguntas amontoam-se e, muitas vezes, surgem associadas a um sentimento de culpa: «Porque é que eu tenho de ser diferente? Não poderia desejar ser o mesmo que toda a gente?»

A vocação apresenta-se como algo de específico e especial para cada ser humano: cada pessoa é única e a sua realização pessoal é específica e especial. Desta perspectiva poder-se-ia pensar que a vocação é algo ligado ao individualismo. No entanto, nada poderia estar mais longe da realidade. A vocação, sendo pessoal, nunca é nem individualista nem colectiva, ela é sempre única e com dimensão comunitária (se assim não fosse, estar-se-ia a mutilar o ser humano ao retirar-lhe a sua dimensão relacional e social).

Além deste sentido pessoal-comunitário, a vocação comporta em si dimensões fundamentais que são transversais a toda a realização humana: por um lado, toda a vocação implica uma conversão pessoal (aquilo que se é e a fé que se professa); por outro lado, a vocação está sempre ligada a uma missão (não existem vocações cujo fim seja o indivíduo – a vocação nunca é egoísta, antes, ela é sempre um acto de amor).

Conversão à verdade do ser humano

Por vezes, associamos a palavra conversão a um conjunto de ritos, de práticas e/ou a uma série de comportamentos que seria bom serem assumidos. No entanto, falar de conversão é ir mais longe! A conversão não pode ser confundida com algo imposto, nem como algo extrínseco ao ser humano. Ela não consiste num dado comportamento num determinado momento ou circunstância, mas uma autenticidade de vida. Neste sentido, a conversão não pode ser entendida segundo um plano ético, mas a partir do sentido da existência/realização pessoal e da autenticidade da essência humana.

A primeira conversão a que o ser humano é chamado ao longo do discernimento vocacional é a conversão ao que a pessoa é verdadeiramente. Aqui, converter-se significa afastar os “fantasmas”, as ilusões e os caprichos que muitas vezes turvam a visão e/ou nos tornam cegos à nossa própria essência. Daqui a importância fulcral do acompanhamento vocacional – o acompanhante ajudar-nos-á a libertarmo-nos das correntes que vamos – por medo ou orgulho colocando sobre a imagem que temos de nós mesmos. Converter-se à realidade do que somos é, portanto, um primeiro passo, comum a toda a vocação.

Um segundo passo da conversão liga-se à coerência: coerência de vida – para que não se dê a cisão entre o que somos e o que desejamos ser para vivermos autenticamente – e coerência efectiva entre aquilo que dizemos e aquilo que fazemos. Este último aspecto abre um enorme leque de dimensões a ter em conta. Por um lado, e num sentido mais imediato, a coerência entre aquilo que dizemos sobre nós mesmos e sobre o que sonhamos para nós e aquilo que fazemos/vivemos no nosso dia-a-dia. Por outro lado, esta coerência implica que a fé professada seja realidade vivida e não apenas palavras soltas. Ora, num caso como noutro, a conversão torna-se coerência, algo que em nada se confunde com automatismos comportamentais, mas como a verdade e autenticidade de vida.

A missão que está no coração de toda a vocação

A conversão existe como um caminho que se vai percorrendo em cada dia e não como algo definitivo que ocorre num determinado momento da vida e que fica para todo o sempre. Apesar de ter uma enorme dimensão pessoal, na medida em que se funda na essência do que somos, a conversão nunca é um fim em si mesma. Ela está sempre associada a uma missão, a uma dádiva de amor que se torna fecunda e geradora de vida para o mundo – só nessa medida é que se pode falar de realização pessoal, de plenitude de vida e de verdadeira felicidade. Por isto mesmo, o Papa Francisco não deixa de convidar «todos os cristãos a explicitar esta dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz da graça recebida se estendam também à relação com as outras criaturas e com o mundo que os rodeia» (Laudato Si’, n.º 221).

 



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No que diz respeito à missão vocacional, aqui também teremos de compreender o sentido da missão – também esta é única e específica para cada pessoa. Ela vai ao encontro da autenticidade do ser humano e, nesse sentido, é inseparável do caminho de conversão. A missão vocacional vai dar corpo e manifestar a verdade que reside no coração de cada um, nela se espelha a vocação, fazendo com que esta se torne visível aos olhos de todos. A vocação torna-se dom na medida em que a missão se vai realizando. A missão vem pôr em evidência aquilo que a pessoa é, aquilo em que ela acredita e aquilo que dá sentido à sua existência. Sem a missão, o desejo e o discernimento vocacional nunca conheceriam a sua consumação e plenitude.

Na actividade missionária, todas as formas de vocação se encontram, dado que «viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa» (Laudato Si’, n.º 217). Por isso, a missão resultante e que dá concretização à vocação implica, mais do que uma opção pelo “fazer algo”, a vivência de uma espiritualidade autêntica que, por meio do amor/caridade, vai possibilitando o amadurecimento integral e a santificação do ser humano na sua integralidade.

Vocação: um caminho único, mas cheio de diversidade

Ao entender-se a vocação como acto de amor autêntico, torna-se possível perceber melhor a amplitude e importância da conversão e da missão no caminhar vocacional. É no amor que se consegue vencer os desafios que se apresentam sempre que se procura viver em total coerência de vida e é também nele que a missão – assuma ela a especificidade que for – se torna fecunda e dom para toda a humanidade. A vocação torna-se, portanto, uma espiral de felicidade em que a coerência de vida se manifesta cada vez mais: naquilo que pensamos, dizemos e fazemos. Procurar viver a vocação sem estas duas dimensões é confinar e restringir a verdade própria da essência humana e, consequentemente, mutilar o ser humano, a sua felicidade e o próprio sentido da sua existência.

Este é um caminho vocacional e, nesse sentido, é um percurso que não fazemos sozinhos; antes, «a grande riqueza da espiritualidade cristã, proveniente de vinte séculos de experiências pessoais e comunitárias, constitui uma magnífica contribuição para o esforço de renovar a humanidade» (Laudato Si’, n.º 216). Assim, a partir daquele que se propõe a percorrer um processo de discernimento vocacional, haverá sempre uma amplitude maior: o acompanhante que ajuda no discernimento, a comunidade onde se dá o crescimento vocacional e todos aqueles que, de um ou de outro modo, auxiliam ao amadurecer da vocação contribuem para que a vocação se torne realidade que brota e se manifesta como o culminar de um caminho de conversão – sempre em progresso – e realização da missão que lhe está inerente.