O bem comum para lá do bem do “eu”

O bem comum para lá do bem do “eu”

05/01/2021
Susana Vilas Boas

O mundo está em constante mudança. As seguranças de hoje tornam-se elos frágeis amanhã. O que damos por garantido agora desvanece-se no momento seguinte. Vivemos em ritmo supersónico e sentimos que não temos outra escapatória: é importante, é urgente, é prioritário... Tudo são justificações para vivermos como vivemos. Em princípio, nada há de errado em querermos “apagar todos os fogos” à nossa volta e, simultaneamente, procurar o nosso bem pessoal. O problema surge quando somos arrastados pela ideia de que para servir/ajudar outros temos de nos anular a nós mesmos e rejeitar grande parte daquilo que somos e daquilo que ansiamos ser.

O bem comum implica um “eu” pessoal que rejeita toda a anulação do ser humano. No entanto, este “eu pessoal” não pode ser entendido como “eu individual”! É nesta ténue diferença que, muitas vezes, somos arrastados para aquilo que não somos. O mundo em constante mudança também não ajuda ao desenvolvimento são e integral do ser humano. Em nome do progresso, a pessoa – enquanto tal – fica em segundo e terceiro plano. O Papa Francisco chama a atenção para este facto, afirmando que «a mudança é algo desejável, mas torna-se preocupante quando se transforma em deterioração do mundo e da qualidade de vida de grande parte da humanidade» (Laudato Si’, n.º 18). Para o papa «o urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar» (Laudato Si’, n.º 13). Assim, o que está em causa no bem comum é a família humana, muito mais do que qualquer outro princípio tecno-progressista. Ora, a família humana pressupõe a presença activa de todos os seus membros, não visando que um faça tudo (prescindindo dos outros e afirmando o seu “eu individual”), mas que cada um (“eu pessoal”) desempenhe activamente o seu papel, de acordo com aquilo que é e com aquilo que deseja ser. Esta é a dinâmica de qualquer família e, consequentemente, a ideia de família humana tem aí a sua raiz.

Para lá do “eu” e do “agora”

Mas, porque se preocupa tanto o papa com a casa comum e a família humana? De facto, esta é uma preocupação que vai de encontro à realidade que vivemos aos mais diferentes níveis. Na verdade, «nunca maltratámos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos. [...] Há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse económico chega a prevalecer sobre o bem comum e manipular a informação para não ver afectados os seus projectos» (Laudato Si’, n.º 53-54). Muitas são as pressões para que o individualismo egoísta paute a nossa reflexão sobre o modo como vivemos e sobre a vocação que discernimos. Sem nos darmos conta, criamos fantasias que ora nos convencem que o que mais desejamos para a nossa realização é impossível de alcançar (uma vez que queremos agradar a outros), ora nos convencem de que os nossos caprichos egoístas resultam de princípios altruístas em favor nosso e do bem de todos.

Estas dificuldades, e o desejo de respostas imediatas que tardam em chegar, exigem passos que levem, desde o início, a uma reflexão descentrada do eu. Isto não significa que o “eu” não seja tido em conta! Ao contrário, significa que o discernimento vocacional e sobre o bem comum (no qual toda a vocação assenta) é feito de forma acompanhada. Importa ter presente que o acompanhamento vocacional não é sinónimo de harmonizar o que queremos com aquilo que os outros querem. É antes um percurso com pessoas que nos ajudam a ver a verdade maior que nos habita, para uma vivência mais autêntica. Trata-se de um discernimento que não visa o individual, mas o pessoal; não visa o bem colectivo, mas o bem comum. Para melhor percebermos, uso uma frase que me foi, certo dia, apresentada num postal (no tempo em que ainda se escreviam cartas!). A frase (da qual já não recordo o autor) dizia: «Os rios não bebem as próprias águas; as árvores não comem os próprios frutos; a riqueza dos dons é sempre em favor dos outros.» Do mesmo modo, não existe nenhuma vocação verdadeira, nem a possibilidade de uma vida autêntica e realizada, sem que seja em favor dos outros. Em sentido figurado, podemos questionar se não estará uma árvore plenamente realizada quando dá fruto. Claro que sim! Ela cumpre aí plenamente a sua “vocação”. Não existe um bem comum generalizado neste cumprimento? Obviamente que sim! Os pássaros, as pessoas e toda a Natureza, de algum modo, beneficiam dos frutos das árvores (mesmo a terra, quando os frutos caem ao chão e aí se decompõem). Da mesma maneira, a vocação sempre que é discernida/vivida produz frutos que, sem excluir a realização do vocacionado, conduz ao bem comum da humanidade e de toda a Natureza que o envolve.

O bem comum e a vocação

Será importante, aqui, clarificar que o bem comum não é motor da vocação. É antes a consequência directa e autêntica da vivência vocacional. A vocação é um projecto de felicidade que parte de Deus e nos é oferecido, de acordo com aquilo que somos verdadeiramente. Ao discernirmos e dizermos “sim” à vocação, entramos neste dinamismo (humano-divino) de felicidade em que todos são beneficiados. Por isso mesmo, nem a vocação nem o bem comum podem ser pensados num determinado tempo e espaço. Antes, como efeito bola de neve, a vivência da vocação arrasta consigo consequências que, com o tempo, se vão tornando cada vez maiores e cada vez mais significativas para todos. Sendo o bem comum consequência directa do “sim” da vocação, similarmente neste caso, importa perceber que «a noção de bem comum engloba também as gerações futuras [...] e pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral» (Laudato Si’, n.º 159 e 157). Deste ponto de vista, não é de estranhar que, muitas vezes, quando olhamos o caminho da vocação, estejamos longe de perceber o alcance que o nosso “sim” ou o nosso “não”, poderá ter para nós mesmos e para toda a humanidade. A grandeza das consequências só o Senhor da Vocação – o Deus da Vida – conhece!

Face a isto, de que adiantará andarmos preocupados e bloqueados pelas circunstâncias adversas que vivemos hoje? O plano de Deus para a Humanidade – o bem comum – ultrapassa tudo o que podemos prever ou pensar. Assim, porque não pôr os pés ao caminho rumo a um discernimento vocacional responsável que nos permita, não apenas descobrirmo-nos, como também encontrar quem de alguma maneira nos ajude a vencer os obstáculos? Que argumentos podemos ainda ter para não arriscar/ousar viver o dom que nos é oferecido? Afinal, como questiona S. Paulo, «que mais havemos de dizer? Se Deus está por nós, quem pode estar contra nós?» (Rom 8,31). Este é o momento favorável! Este é o “tempo presente” – ele é, precisamente, “presente de Deus” para quem quiser ousar dar um passo pelos caminhos da vocação, um passo que será sempre fecundo e porta aberta rumo a um horizonte verdadeiramente feliz: um horizonte onde o bem comum acontece!