Missão em zona de violência

Missão em zona de violência

29/12/2020
Cristina Fernandes Ferreira

À porta do seminário comboniano de Kisangani, onde ensina o missionário português Arieira de Carvalho, cada dia aparece mais gente a pedir ajuda, reflexo do agravamento da situação sociopolítica no país que ameaça degenerar em guerra civil.

«Todos os dias vem muita gente bater-nos à porta. A pobreza é grande e as pessoas vão de porta em porta para que alguém as ajude», disse, por telefone, este padre português, natural de Viana do Castelo.

Aos 73 anos, José Arieira de Carvalho cumpre desde 2015 uma terceira missão na República Democrática do Congo, onde já tinha estado por quase duas décadas (1981-1989 e 1996-2006).

Ensina uma turma de 35 jovens que se preparam para a vida missionária no seminário de Kisangani, cidade do Nordeste do país, que descreve como «uma das mais calmas da RD do Congo» actualmente, depois de anos de violência e sofrimento causados pela guerra entre Ugandeses e Ruandeses no ano 2000.

Uma calma e normalidade que contrastam, segundo o missionário português, com outras zonas do mesmo Nordeste congolês, nomeadamente na província de Kivu, onde a instabilidade política está a deixar campo aberto para «muitos roubos, assassínios e ataques à mão armada».

«Praticamente todos os dias há massacres, gente forçada a abandonar as aldeias», disse. Na origem desta instabilidade, está o afastamento do actual chefe de Estado, Félix Tshisekedi, da coligação de governo estabelecida em Maio de 2019 com o partido do presidente cessante Joseph Kabila e o estabelecimento de uma “União Sagrada”, a que se juntaram muitos dos deputados que estavam anteriormente na Frente Comum do Congo (FCC), de Kabila.

«É uma situação explosiva. O que isto vai dar, ninguém sabe, pode até dar uma guerra civil», receia o missionário.

A República Democrática do Congo realizou eleições em Dezembro de 2018, após vários adiamentos e depois de Kabila ter sido sujeito a múltiplas pressões para deixar o cargo.

Apesar da vitória de Félix Tshisekedi, o partido de Kabila manteve uma maioria parlamentar após a eleição, cujos resultados foram contestados pela oposição e pela Igreja Católica, que sustenta que a votação foi ganha pelo candidato opositor Martin Fayulu.

Desde então, a República Democrática do Congo vinha sendo governada por uma coligação entre as forças de Tshisekedi e de Kabila.

Quotidiano «caótico»

O padre Arieira assinala também as consequências económicas e sociais desta instabilidade.

«As escolas estão abertas, mas os professores não são pagos. É por isso que várias escolas estão em greve. Os médicos nos hospitais também se queixam de que não são pagos», referiu.



O missionário português apontou ainda o estado das estradas, que, segundo disse, nas regiões interiores do país «praticamente deixaram de existir».

«As estradas que vêm de Butembo ou Goma, que têm muitos produtos agrícolas que abastecem uma boa parte do Congo, quase não existem e algumas vezes juntam-se 500 a 800 camiões porque um encrava na estrada e os outros já não podem passar», disse.

O sacerdote descreve um quotidiano «caótico» a nível político, económico e social, numa comparação com os primeiros anos da sua passagem pelo país, altura em que governava Mobotu Sese Seko.

«Essa foi uma altura calma em que as condições de segurança eram razoáveis e a agricultura e indústria funcionavam. Pouco a pouco, as coisas foram-se deteriorando e dá impressão de que cada ano se deterioram mais», disse.

Num país com potencial para ser um dos mais ricos do mundo por causa dos recursos minerais e da fertilidade dos campos agrícolas, não existem indústrias e boa parte dos produtos alimentares são importados.

«As únicas fábricas que funcionam são as de cerveja. O Congo é um dos países mais ricos do mundo, tem a maior floresta de África, tem ouro, cobalto e diamantes. Todo o país é cultivável, mas importa arroz e produtos agrícolas, quando podia fornecer esses produtos para toda a África», lamentou.

Para o missionário comboniano português, toda esta riqueza acabou por se «tornar uma maldição» para a República Democrática do Congo.

«Em todos os países [da África] onde há mais recursos é onde há mais ataques e massacres e as populações não lucram nada com isso, vivem na pobreza», disse.

O sacerdote apontou que o ébola continua a matar entre a população, que sofre ainda com a malária e a febre tifóide.

«O ébola continua activo, mas ninguém fala disso por causa da covid-19. Não passa um mês sem que um dos nossos jovens seminaristas seja atacado pela malária. Felizmente, já é fácil de tratar, mas as pessoas sem meios morrem por falta de um comprimido que custa 5 ou 10 dólares», explica.

O missionário disse ainda que a pandemia de covid-19 não atingiu muito o país, onde apenas há registo de casos isolados [total de 323 mortes e 11 918 casos, dados oficiais de 20/11/2020]. «Felizmente, porque se acontecesse, 50% da população iria morrer», disse, lembrando que nos transportes ou nos mercados «as pessoas vivem todas amontoadas».