Três mal-entendidos, três pistas de leitura e três propostas

Três mal-entendidos, três pistas de leitura e três propostas

18/11/2023

Reflexão do P. Manuel João Correia para o XXXIII Domingo do Tempo Comum, em que Jesus nos encoraja a frutificar os talentos que recebemos, especialmente o dom da fé.


Estamos no penúltimo domingo do ano litúrgico. O Evangelho oferece-nos a parábola dos talentos (Mateus 25,14-30), que faz parte do "discurso escatológico", o quinto e último discurso de Jesus segundo o Evangelho de São Mateus. O Senhor dá-nos instruções sobre o modo como o discípulo se deve comportar enquanto espera o seu regresso no fim dos tempos. No domingo passado, com a parábola das dez virgens, Jesus convidou-nos à vigilância: "Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora". Este convite é retomado hoje por São Paulo na segunda leitura: “O dia do Senhor vem como um ladrão noturno... Por isso, não durmamos como os outros, mas permaneçamos vigilantes e sóbrios”. Hoje, porém, com a parábola dos talentos, a tónica é colocada na diligência. A expectativa do cristão caracteriza-se pelo seu empenhamento no mundo.

Neste domingo, celebramos também o Dia Mundial dos Pobres, instituído pelo Papa Francisco. O tema proposto para este ano é: Nunca afastes de algum pobre o teu olhar”. Este Dia está ligado à Festa de Cristo Rei, no próximo domingo, na qual o Senhor nos revelará uma presença misteriosa da sua realeza nos pobres.

 

Três mal-entendidos

Antes de abordar a parábola, gostaria de mencionar três mal-entendidos que correm o risco de deturpar a sua compreensão.

1) O primeiro é pensar que a parábola é um incentivo ao activismo, à produtividade e à eficiência, tão promovidos na sociedade actual. Como se as "obras" pudessem trazer-nos a salvação!

2) O segundo é pensar que quando falamos de "talentos" nos referimos aos nossos dons naturais, como quando dizemos que uma pessoa "tem talentos". De facto, a palavra grega "talento" foi transmitida às nossas línguas por esta parábola. É claro que os dons naturais, as nossas capacidades e, sobretudo, o próprio dom da vida, também devem ser desenvolvidos, mas a parábola fala de outra coisa!

3) O terceiro mal-entendido é ler a parábola numa chave individualista. Infelizmente, a educação que recebemos põe muitas vezes a tónica no empenho individual "para salvar a própria alma", negligenciando a dimensão eclesial. Na realidade, os três servos - aos quais devemos acrescentar a "mulher virtuosa" da primeira leitura e a "mulher fecunda" do salmo responsorial - representam toda a comunidade eclesial!

 

Três pistas de leitura 

1. O QUE é que o talento representa? O talento não era uma moeda, mas uma medida de peso ("talento" em grego significa "peso"). Seria, por assim dizer, uma espécie de grande lingote de prata, que pesaria cerca de trinta quilos, portanto um verdadeiro tesouro. O que é que o talento representa na parábola? São os tesouros do Reino que Jesus nos confiou: a sua Palavra, a Graça, o Espírito Santo... Penso sobretudo no dom da fé, esta luz que não deve ser colocada "debaixo do alqueire, mas no candelabro" (Mt 5,15) para iluminar a nossa existência e a vida da Igreja e do mundo!

2. QUEM são os servos? O homem rico da parábola, que “parte de viagem”, é facilmente identificável: é o Senhor ressuscitado que subiu ao céu. Os servos somos nós seus "ministros" a quem Jesus confiou, com grande generosidade e confiança, os tesouros do Reino. Os três representam a Igreja inteira! A nós, pela fé, foi-nos confiado o Tesouro do Reino, que é a própria pessoa de Jesus.

3. ONDE fazer frutificar os talentos? A Igreja não é uma "sala de espera" onde se “dormita” à espera do regresso de Jesus. O Senhor enviou-nos ao mundo para fazermos frutificar o talento da fé, quer tenhamos "muita" ou "pouca" fé! Recordo-me de um episódio da minha vida de jovem missionário. Destinado a uma nova paróquia (Adidogome), nos arredores da capital do Togo, fiquei surpreendido por haver apenas três comunidades cristãs, apesar de existirem vários coros, associações e grupos de oração. Disse-lhes: "Eu vim de longe, percorri milhares de quilómetros para vir anunciar-vos o Evangelho, e vocês não são capazes de percorrer alguns quilómetros para o anunciar nas aldeias vizinhas? Saibam que nenhum grupo tem direito de cidadania na comunidade cristã se não se empenhar no apostolado!" Atribuí a cada grupo uma aldeia. Alguns anos mais tarde, havia cerca de vinte capelas e, atualmente, várias tornaram-se novas paróquias!
O cristão que não proclama a sua fé enterrou-a e já celebrou o seu funeral!

 

Três propostas de reflexão

1) Agradece ao Senhor pelos dons que te concedeu, especialmente o dom da fé. Pergunta a ti mesma/o se há algum "talento" que enterraste por preguiça, comodismo ou medo de arriscar. E lembra-te que "A todo aquele que tem, dar-se-á mais e terá em abundância; mas, àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado".

2) Perante as dificuldades e a tentação do desânimo no teu empenho cristão, deixa ressoar no teu coração esta palavra/promessa de Jesus: "Muito bem, servo bom e fiel. Porque foste fiel em coisas pequenas, confiar-te-ei as grandes. Vem tomar parte na alegria do teu senhor".

3) Em que campo concreto achas que o Senhor te convida a fazer frutificar os teus "talentos"? Talvez quisesses fazê-lo "noutro lugar" ou noutras condições mais "ideais". Também eu já me queixei ao Senhor: "Porque não me deixaste continuar a semear no vasto campo do mundo?" E o Senhor fez-me compreender que o solo mais fértil é a pequena horta à volta da minha cadeira de rodas! Lembremo-nos, no entanto, que um campo privilegiado para investir os nossos talentos é o dos pobres!

P. Manuel João Pereira Correia