Quem ocupa a cátedra do teu coração?

Quem ocupa a cátedra do teu coração?

05/11/2023

O evangelho deste domingo (Mateus 23,1-12) continua num contexto tenso de oposição entre Jesus e os seus adversários. Agora, porém, é Jesus que toma a iniciativa e faz uma série de denúncias muito duras contra os escribas e fariseus, que se prolonga por todo o capítulo 23 do evangelho de Mateus. A passagem de hoje é a introdução. Seguem-se os “7 ais” pronunciados por Jesus contra eles: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas!”

Podemos surpreender-nos com a linguagem severa e mordaz de Jesus contra estes dois grupos que, no entanto, eram estimados pelo povo. Vários fariseus farão parte da comunidade cristã primitiva. O próprio S. Paulo tinha sido “fariseu e filho de fariseus” (Actos 23). Por que razão, então, Jesus se indigna tanto contra eles?

1. O fermento dos fariseus

É provável que o evangelista Mateus tenha carregado um pouco as tintas, pensando na sua comunidade, onde havia fariseus convertidos que, com o seu formalismo e legalismo, corriam o risco de aguar o vinho novo do Evangelho. É preciso lembrar também que estamos no fim da vida de Jesus e que ele quer advertir os seus discípulos contra o perigo de que o “fermento dos fariseus” (Mateus 16,6) entre na comunidade.

Perante estas repreensões, podemos adotar duas atitudes falaciosas. A primeira é pensar que Jesus está a falar a uma categoria de pessoas do seu tempo: “Naquele tempo...”, assim começa a proclamação do Evangelho. Infelizmente, essa categoria de pessoas nunca desapareceu, porque esconde-se em cada um de nós! A segunda atitude consiste em pensar que esta palavra é dirigida aos responsáveis da comunidade cristã, padres e bispos em primeiro lugar. E com razão! Revestimo-nos de títulos e honras que nos tornaram ridículos e risíveis: eminências, excelências, monsenhores, reverendos.... E ai de nós se nos enganarmos no título, rebaixando alguém! Seria preciso uma bela varredura de títulos e pompas para purificar a Igreja de tanto mundanismo! Lembro-me da minha surpresa, ao chegar a África, ao ouvir as pessoas chamarem-me “fadavi”, isto é, “pequeno padre”, enquanto o título de “grande padre”, “fadagan”, estava reservado ao pároco! Fazia-me sorrir ouvir os catequistas e outros responsáveis das comunidades apresentarem-se frequentemente com um subordinado: “este é o meu segundo!”, diziam. Como somos hábeis na arte de nos destacarmos!

O vírus do “farisaísmo” está presente em todos os sectores da vida pública e social, e não só nas igrejas. “Aquele que for o maior entre vós será o vosso servo”, diz Jesus. Quem dera que assim fosse!

 

2. A ofalmodulia

Mas de que é que Jesus censurava os escribas e os fariseus? Essencialmente, de três coisas:
- A incoerência de vida: “eles dizem e não fazem”. Esta é ainda hoje a censura mais frequente contra nós!
- Um legalismo extremo que escravizava as pessoas: “Atam fardos pesados e põem-nos aos ombros dos homens, mas eles nem com o dedo os querem mover”. Esta é uma forma de exercer o poder que ainda hoje parece estar em vigor!
- A procura quase espasmódica de honras e da estima dos outros: “Tudo o que fazem é para serem vistos pelos homens”. Trata-se de uma autêntica patologia que S. Paulo designa por oftalmodulia, termo grego talvez por ele cunhado por não se encontrar noutro lugar. Significa escravidão ou “servidão do olhar”, subserviência ao olhar dos outros (cf. Colossenses 3,22; Efésios 6,6). 

Estas três censuras podem resumir-se numa palavra: HIPOCRISIA de vida! Hipocrisia vem de uma palavra grega que significa simulação, ligada à representação teatral. O hipócrita vive a vida com máscaras! Vive na falsidade e no engano! Que triste! A hipocrisia rouba-nos toda a credibilidade. O antídoto para a hipocrisia é a HUMILDADE: “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”! Quanto mais um edifício for alto, mais os seus alicerces devem descer!

3. A vida não é um palco, mas uma palestra de fraternidade!

Nas leituras de hoje, chama-me a atenção a abundância de termos relacionados com a família: pai, mãe, criança, filhos, irmãos... Deus criou-nos para sermos uma família e não actores que contracenam num palco, usando máscaras de acordo com o papel a desempenhar! A vida é uma palestra de fraternidade!

Como cultivar esta fraternidade? Jesus dá-nos três indicações concretas que nos introduzem na família primordial: a TRINDADE.
- “Vós não vos deixeis tratar por ‘Mestres’, porque um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos”. Quem é esse Mestre? O Espírito Santo“O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á tudo o que vos tenho dito” (Jo 14,26);
- “Na terra não chameis a ninguém vosso ‘Pai’, porque um só é o vosso pai, o Pai celeste. Também o profeta Malaquias, na primeira leitura, nos interpela: “Não temos todos nós um só Pai? Não foi o mesmo Deus que nos criou?”;
- “Nem vos deixeis tratar por ‘Doutores’, porque um só é o vosso doutor, o Messias”.

Esta é uma boa ocasião para nos imergirmos de novo nas águas do nosso batismo, nas águas da nossa regeneração como filhos, nas águas da fraternidade! 

Podemos também perguntar-nos quem é o nosso mestre, o nosso pai, o nosso guia. É fácil escutar outros mestres em voga, em vez da voz do Espírito, o nosso Mestre interior. É fácil adoptar outras paternidades de cômodo, desautorizando a paternidade divina. É fácil deixar-se enganar por algum guru de turno que nos desvia da sabedoria de Cristo. Quem ocupa a cátedra do nosso coração? Não haverá aí intrusos?

 

Para a reflexão semanal 

Façamos uma revisão do nosso “armário” para ver quantas máscaras usamos no nosso quotidiano. Experimentemos prestar mais atenção às máscaras que usamos com maior frequência. E lembremo-nos de que o nosso verdadeiro rosto, por mais marcado por rugas, defeitos e fraquezas, é sempre mais amável do que qualquer máscara!

P. Manuel João Pereira Correia