Fora do amor não há salvação!

Fora do amor não há salvação!

28/10/2023

Reflexão do P. Manuel João Correia para o evangelho do XXX Domingo do Tempo Comum, em que Jesus explica que o amor é a chave da existência.



No domingo passado, assistimos a uma disputa entre Jesus e os fariseus, que se tinham aliado com os herodianos para armar-lhe uma cilada a propósito do imposto a pagar a César. O evangelho deste domingo (Mateus 22,34-40) apresenta-nos uma nova disputa com os fariseus, desta vez aliados com os saduceus, a rica elite sacerdotal e política. Entre estas duas disputas, houve uma outra entre Jesus e os saduceus (omitida na liturgia), sobre a ressurreição dos mortos, com a famosa história da mulher viúva de sete maridos.

A) Uma pergunta inocente e pertinente?

A controvérsia de hoje é sobre uma questão teológica: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”. A pergunta é feita por um doutor da Lei, por assim dizer um teólogo, a quem os fariseus tinham pedido uma ajuda para pôr à prova a ortodoxia de Jesus. Mas, desta vez, onde é que está a armadilha? 

A pergunta parece inocente e pertinente. De facto, com a intenção de regular toda a vida segundo a lei de Deus, os rabinos tinham identificado 613 preceitos na Torá (ou seja, no Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia), para além dos Dez Mandamentos. Desses 613 preceitos, 365 eram negativos, proibições (coisas a não fazer), correspondentes ao número de dias do ano civil, e 248 eram positivos, prescrições (coisas a fazer), correspondentes ao número de órgãos do corpo humano, segundo a crença da época. Neste emaranhado de leis, sentia-se a necessidade de discernir o que era mais importante. 

Mas se a questão era pertinente, onde estava a armadilha? Para a mentalidade comum, o grande mandamento era o terceiro do decálogo: a observância do sábado, porque o próprio Deus o tinha observado após o “trabalho” da criação. Os seus adversários esperavam, portanto, que Jesus desse esta resposta e, nessa altura, dir-lhe-iam: “Então porque é que tu e os teus discípulos não guardam o sábado?”.

Jesus, porém, confunde-os mais uma vez. Não menciona nenhum dos Dez Mandamentos. Não se coloca no terreno legalista deles, mas eleva-se ao nível do amor. Jesus cita a profissão de fé do Shema' (Deuteronómio 6,4-5), a oração que cada israelita recita três vezes por dia (de manhã, à noite e ao deitar): “‘Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu espírito’. Este é o maior e o primeiro mandamento”. Jesus acrescenta, porém, uma citação do Levítico 19,18: “O segundo, porém, é semelhante a este: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’”. Quem é este “próximo”? A primeira leitura especifica-o: o indigente, o pobre, o estrangeiro, o órfão e a viúva (Êxodo 22,20-26). 

Nunca... em toda a Escritura, os "dois amores" são colocados tão indiscutivelmente no mesmo plano para se espelharem um no outro. O segundo é semelhante ao primeiro: isto é, não é idêntico, nem sequer mais ou menos importante. Mas é feito da mesma matéria, um espelhando o outro, um tornando verdadeiro o outro” (Gabriella Caramore).

S. Agostinho comenta: “O amor a Deus é o primeiro que se ordena, mas o amor ao próximo é o primeiro que se deve praticar”.

B) Alguns pontos de reflexão

1. O amor é a lei!

O amor torna-se a chave da existência. Deus é amor (1Jo 4,8.16) e amou-nos primeiro (1Jo 4,19) e o crente é aquele que acreditou no amor (1Jo 4,16). Não um amor sentimental, mas um amor feito de escuta de Deus e de boas obras para com os irmãos. Porque aquele que diz que ama a Deus e não ama o seu irmão é mentiroso (1 Jo 4,20-21). O amor do irmão é o espelho e a prova do amor de Deus. É por isso que Jesus sintetiza tudo no seu “mandamento novo”: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34; 15,12). O amor é o motor da vida e da história!

2. Do deus-senhor ao Deus-Esposo!

O caminho de amadurecimento para a revelação de Deus-Amor e a passagem do regime da lei para o do amor foi um longo processo efectuado pelos Profetas. Jesus leva-o à sua plenitude. “E acontecerá naquele dia - oráculo do Senhor - que me chamarás 'meu marido', e não me chamarás mais 'Baal, meu senhor'” (Oséias 2,18).

3. A sinfonia do amor

O teólogo protestante alemão D. Bonhoeffer escreveu da prisão: “O amor de Deus é como o cantus firmus” da“polifonia da vida” . “Gostaria de vos pedir que fizésseis ressoar claramente o cantus firmus na vossa vida em comum, e só então haverá um som pleno e completo.... Só quando nos encontramos nesta polifonia é que a vida se torna completa” (carta de 20 de maio de 1944). Só quando existe este cantus firmus, a melodia de fundo do amor de Deus, é que podemos unir todos os amores e fazer um canto polifónico dos três amores fundamentais da nossa existência: Deus, o próximo e nós próprios!

4. Amarás!

Os deuses pagãos queriam adoradores submissos, escravos, sob o regime do medo. O Deus de Jesus Cristo quer filhos livres, capazes de amar. O verbo amar - ahav em hebraico - aparece 248 vezes no Antigo Testamento (Fernando Armellini). Um número que me chama a atenção por ser o número de preceitos positivos (coisas a fazer) que coincide com o número de membros do corpo humano, segundo a tradição rabínica. As palavras do Shemà (em hebraico) são 245. Repetindo a última expressão, tornam-se 248. Eu diria, como que para sublinhar simbolicamente, que a única coisa a fazer é amar e devemos fazê-lo com todas as fibras do nosso ser: “com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu espírito”!

P. Manuel Joao Pereira Correia