A quem é que eu pertenço?

A quem é que eu pertenço?

21/10/2023

Reflexão do P. Manuel João Correia para o evangelho do XXIX Domingo do Tempo Comum, Dia Mundial das Missões, em que Jesus convida a dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus!



Hoje a Igreja celebra o Dia Mundial das Missões. A mensagem do Papa para este Dia, convida-nos a reflectir sobre a narração evangélica dos dois discípulos de Emaús, a partir de três imagens sugestivas: “corações ardentes pelas Escrituras explicadas por Jesus, olhos abertos para O reconhecer e, como ponto culminante, pés ao caminho. Meditando sobre estes três aspetos, que traçam o itinerário dos discípulos missionários, podemos renovar o nosso zelo pela evangelização no mundo de hoje”. 

Recordamos certamente que, nos três últimos domingos, Jesus contou três parábolas aos chefes dos sacerdotes e aos fariseus: a dos dois filhos enviados para trabalhar na vinha, depois a dos vinhateiros assassinos e, por fim, a dos convidados para as bodas. As três parábolas eram dirigidas contra os líderes religiosos e políticos de Israel. A tensão foi crescendo e o destino de Jesus foi selado. Todos se tinham virado contra ele e os chefes tinham decidido matá-lo. Só faltava o pretexto. Então, “os fariseus reuniram-se para deliberar sobre a maneira de surpreender Jesus no que dissesse”

 

1. Uma armadilha bem montada!

Enviaram-Lhe alguns dos seus discípulos, juntamente com os herodianos”.
Herodianos e fariseus eram adversários, mas unem-se contra Jesus. Os herodianos queriam unificar o país sob a égide de Herodes, vassalo de Roma. Os fariseus, pelo contrário, embora moderados em relação aos zelotas, independentistas radicais, aspiravam à autonomia em relação a Roma. 

Os fariseus, porém, não se atrevem a ir ter eles próprios com Jesus e enviam os seus discípulos. Porquê? Para esconder a sua jogada? Para a fazer passar por uma questão de debate de escola? Estes discípulos começam por tecer um longo elogio ao “Mestre”, reconhecendo a sua veracidade e imparcialidade, antes de apresentarem a pergunta combinada com os herodianos: “Diz-nos o teu parecer: É lícito ou não pagar tributo a César?”. A armadilha estava bem montada. Se Jesus respondesse “sim”, antagonizaria o povo, que odiava os romanos. Se respondesse “não”, poderiam acusá-lo de subversão (o que, de qualquer modo, fariam perante Pilatos: cf. Lucas 23,2). 

 

2. Jesus, mestre do discernimento

Na resposta de Jesus, vislumbro, apesar da sua brevidade, uma grande lição de discernimento e, concretamente, quatro indicações preciosas para nós.

 

1) “Hipócritas!”

Primeiro passo: Jesus mostra-se uma pessoa livre, como aliás os seus adversários já tinham reconhecido. Não se deixa cooptar pela adulação farisaica e desmascara a hipocrisia deles. O “incenso” pode turvar os olhos e a mente! E é aqui que nós tropeçamos muitas vezes. Deixamo-nos condicionar pelo elogio ou pela opinião dos outros, o que limita a nossa liberdade e clarividência. Jesus discerne porque é livre e é livre porque discerne!

 

2) “Porque Me tentais?”
Muitas vezes, Jesus responde a uma pergunta com outra pergunta. Fazer perguntas a quem as faz é uma forma de envolver a própria pessoa e de a fazer refletir. Uma abordagem passiva dos problemas tem sido uma das grandes deficiências dos leigos católicos, fruto de um clericalismo que prevaleceu durante séculos. O padre tinha-se tornado uma espécie de atendedor automático. O leigo cristão introduzia a moeda da “pergunta” e recebia a resposta pronta, pré-embalada. E nós prestávamo-nos a esse jogo! Infelizmente, esta era também a atitude da Igreja perante a sociedade até há algumas décadas atrás. Esta pretensão de ser a “mestra”, sempre e em qualquer assunto, parece-me ser uma das principais causas do atual descrédito da Igreja no contexto da cultura ocidental. 

Parece-me, pelo contrário, que é urgente aprender a saber dizer: “Não sei!”, reconhecendo a nossa incompetência perante a complexidade e a novidade de tantas situações problemáticas do mundo atual e colocando-nos numa atitude humilde de procura. 

 

3) “Mostrai-Me a moeda do tributo. Eles apresentaram-Lhe um denário, e Jesus perguntou: De quem é esta imagem e esta inscrição? Eles responderam: De César”. 
Eis o terceiro passo de Jesus para discernir esta questão espinhosa, aparentemente sem saída: ir à situação concreta! Este gesto de Jesus desconcerta os seus interlocutores. Porquê? O denário, a moeda de prata mais comum, trazia a efígie do imperador romano, Tibério (14-27 d.C.), representado como um deus, com a inscrição: “Tibério César Augusto, filho do divino Augusto”; e no reverso: “Pontífice Máximo”. A utilização da moeda era um reconhecimento implícito da soberania romana. Mas havia algo muito mais grave. A discussão tinha lugar no interior do Templo de Jerusalém, onde era proibida a introdução de qualquer imagem, quanto mais a do César, representado sob a forma de um deus! No Templo circulava uma moeda especial e, para isso, havia cambistas à entrada. Os discípulos dos fariseus transgrediram esta regra, introduzindo uma moeda pagã no espaço sagrado do Templo. Assim, aqueles que queriam tecer uma armadilha a Jesus, são eles próprios apanhados em flagrante.

 

4) “Então, dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus!”
O quarto momento de discernimento é um convite a sair do âmbito estreito da situação concreta para a ver de uma forma mais ampla e com um horizonte mais alargado. Uma “questão” isolada e absolutizada torna-se uma verdade falaz ou parcial. Só uma luz exterior mais ampla a coloca na devida perspetiva. 

Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” é uma das frases mais famosas do Evangelho, mas também uma das mais enigmáticas. É frequentemente interpretada como se houvesse duas esferas autónomas de responsabilidade. O “César” ocupa-se das “coisas terrenas” e Deus das “coisas espirituais”! Mas o que é que “pertence” a César? Pertence a responsabilidade pela ordem e pela paz social e de garantir a liberdade e a justiça! E o que é que pertence a Deus? Tudo! “Eu sou o Senhor e não há outro; fora de Mim não há Deus... Eu sou o Senhor e mais ninguém!” (ver primeira leitura, Isaías 45,1.4-6). Toda a autoridade terá de responder perante Deus pelo bem do homem que lhe é confiado: “Eu te cingi, quando ainda não Me conhecias!” (primeira Leitura). É por isso que o cristão nunca pode abdicar do seu livre arbítrio, do respeito pela sua consciência e da sua capacidade crítica. “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens” (Actos dos Apóstolos 5,29). 

Uma pergunta que todos devemos fazer a nós próprios é precisamente esta: a quem é que eu pertenço? A uma família, a uma profissão, a um grupo social, a um povo, a uma nação? Sem dúvida! Mas Jesus recorda-nos a nossa pertença fundamental: Tu pertences a Deus! 

 

3. O denario de César e a moeda de Pedro

O denario de César trazia a sua imagem como marca da sua propriedade. O homem, criado “à imagem e semelhança de Deus” (Génesis 1,26-27), traz no seu espírito a marca da sua pertença ao Senhor. De aí a afirmação de Jesus: “Dai a Deus o que é de Deus!”

Permiti-me uma imagem ousada. O denário do imposto a César leva-me a pensar na moeda que Pedro, por instrução de Jesus, extrai da boca do peixe para pagar o tributo do Templo (Mateus 17,24-27). Uma única moeda para Jesus e para Pedro, ambos associados nessa moeda. Que imagem simbólica trazia essa moeda? A imagem de Cristo na frente, a de Pedro no seu reverso! A imagem de Cristo de um lado da moeda e a tua ou a minha do outro lado! Tu pertences a Cristo e Cristo pertence-te a ti. “Tudo vos pertence, mas vós pertenceis a Cristo e Cristo pertence a Deus” (1 Coríntios 3,22-23). 

 

Para uma reflexão pessoal

Convido-vos a ler a bela e inspiradora mensagem do Papa para o Dia Mundial das Missões.

P. Manuel João Pereira, Comboniano